terça-feira, 27 de outubro de 2009

Pedinte


Amor é um direito que depende de escolha. Eu não tive escolha. Repare só nesse entrave sociológico-sentimental que vivi. Pra começar e fazer com que você me entenda, é preciso abancar a história não só pela primeira página, mas pela capa.

A culpa não é de ninguém. É culpa sem dono. Pensando bem, talvez se meu pai não tivesse brigado com o Agenor Castilho, seu antigo sócio e que três anos após desfeita a parceria, tornou-se o mais bem sucedido empresário do ramo de luvas de borracha, hoje eu estaria com outra vida. Aí sim, ela repararia em mim. Não me importa se por interesse ou não, eu seria feliz com ela.

Eu a vi antes. No começo, nada de mais me chamou a atenção. Continuei com a mão estendida, já pela segunda hora seguida, em busca de mais 85 centavos que inteirara minha quarta “granada” – modo como é conhecida a “Caninha da Roça” entre meus colegas de trabalho. Foi aí que ela veio até mim. Deu-me uma moeda de 25 centavos e duas de 10. Insuficiente em relação a minha meta anterior, mas muito além do que eu esperava. Disse: “Pega, seu moço.”, e eu automaticamente repliquei com “Deus te abençoe.” Ela foi embora, sem saber que eu não falei retoricamente. Era sincero. Era amor.

Por baixo dessa barba e cabelos com medidas além da conta, existia um menino tremendo como vara verde só de recordar dos olhos azuis, quase cinzas, que insistiam em abusar do contraste com o cabelo ruivo e as sardas. Ela nem reparou quando minha boca ficou aberta e minha mente fez a volta ao mundo cinco vezes em 3.1 segundos. Normal. Quem faria diferente?

A repetição dessa cena se deu pelos meses seguintes. Deu pra reparar que ela gosta de vestidos floridos e perfumes adocicados. Não usa jóia e prefere sapatos sem salto. Tem furinho na bochecha quando ri e um olhar imperceptivelmente vesgo. Deu pra reparar...

Depois de muito tempo, ao comer um pão com manteiga com um pingado na padaria do seu Abraão, encontrei de bobeira uma matéria sobre um trabalho de caridade. Já vi vários desses, mas algo ali me deixou um tanto quanto triste. Na matéria havia uma foto com a seguinte legenda: “Há 7 anos, Irmã Elizabeth chefia trabalho de caridade com doentes terminais sem família”. Ela ficou tão bonita naquele retrato...

Não tenho o hábito de cultivar pena de mim mesmo, mas até que não resisti. Foi então que resolvi usar meu último recurso. Peguei as moedas que ela me deu – não havia gastado nenhuma sequer, apesar de muitas vezes ter passado fome por essa razão – e comprei o mais bonito buquê de flores. Eram silvestres, mas não sei o nome delas. E ela passou de novo. Quando estendi a mão, ela já foi procurando na bolsa alguma esmola. Nesse instante apresentei as flores e dei para ela. Ela corou e riu. Com o mesmo furinho na bocheca...

2 comentários:

  1. gostei muito desse. =)
    (finalmente tomei vergonha na cara e decidi comentar)

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  2. Ela merecia essa imagem singela, neste singelo post.

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