segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Sujei-o de batom

Foi a mim confiado como peça valiosa. Mas eu, sujei-o de batom. Nervosa, desajeitada, sem saber onde colocar as mãos, eu simplesmente sujei-o de batom. Deixei a marca mais indesejável, suspeita, errônea que uma mulher pode deixar no que não é seu. Ou – no que é seu por um instante clandestino. Era essa a forma que eu tinha de agradecer a confiança a mim reservada? Esse era o tratamento desleixado que eu oferecia a algo completamente entregue em minhas mãos? E agora, que explicação teria? Quais desculpas se carregam em páginas seguintes para um descuido tão inútil e revelador? O que responderia ao olhar decepcionado, naquela noite, sob a luz da luminária na cabeceira da cama? Reparar, assim, naquelas entrelinhas, uma marca inexplicável e irreparável...

Naquela sala de espera, no ante-momento que decidiria os próximos caminhos da minha vida que é alheia e pessoal, sujei de batom aquele livro que me destes para ler enquanto o esperava. Como isso veio a acontecer? Pergunta grotesca, desconcertante. Peguei o livro e me entreguei à dança de segurá-lo com uma mão e folhear com a outra que, entre página e outra, também apoiava o queixo e tocava os lábios. Para confessar, na minha inquietude, a cada folha virada, a cada verso olhado e não lido, entre aqueles minutos eternos que você finalizava o seu trabalho, eu também roia os cantos dos dedos (as unhas, jamais) e foi assim que deixei a minha digital rosa na ponta superior daquele papel branco, sobre aqueles contos de teatro marginal.

Em desespero, fiquei. Como poderia aquela marca aparecer ali? Simples e inocente? Era a prova do meu desjeito. Minha reprovação. Minha censura. Tentei apagar com saliva (como a gente faz no colégio, quando borra o lápis e não tem borracha). Piorou. Sujou ainda mais. Era inútil qualquer tentativa de recompor a página branca, lisa, limpa. Marca de batom é marca para a vida toda. Esperei, conforme esperei minha condenação. Até que, na hora do juízo final, passou o livro ao meu pertencimento, com toda a minha culpa: “O livro é seu. Leve-o para você”. Deu-me de presente como a minha inocência vadia. Agora, eu posso sujá-lo verdadeiramente. É meu, mesmo impuro.

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