sexta-feira, 11 de maio de 2012

Cena 01

Quando a vi pela primeira vez ela caminhava a passos largos de bêbado, numa ruazinha esquecida do Centro, a noite já dentro. Cigarro aceso, garrafa na mão e um riso aberto. Ela olhava pra cima, pro alto dos prédios, procurando sabe deus o quê.

Fui ao seu encontro sem saber como proceder: nos falamos algumas vezes por telefone e e-mail, e sempre no tom profissional do trabalho. Não tinha idéia de como ela se permitira vir bêbada ao meu encontro. Mas fui ter com ela. Chamei-a pelo nome, ela me olhou surpresa.

__ Você quem é?
__ Filipe. Nos falamos hoje cedo por telefone.
__ OOOOOOIII, Filipe. Vai me desculpar. Acabei de ser deixada no altar.
__ Como?
__ Não que eu estivesse no altar dez minutos atrás. Não, mas tava quase lá. Filipe, ia me casar mês que vem. Daí meu noivo achou legal terminar comigo. E ainda me pediu a aliança de volta, vê só, pra empenhar.

E aí eu fazia o quê? Não sabia nem que ela era noiva. Como consolar alguém que não conheço? Era péssimo com essas coisas.

__ Daí, Filipe, daí resolvi beber. Nunca fui muito de beber, mas essa situação merecia um porre, não acha?

Ela passou por mim ainda rindo, o álcool misturado com o perfume dela, e eu fiquei...engraçado. Realmente não sabia o que fazer, então só fiquei ali parado, esperando pelo próximo movimento dela. Ela parou perto de mim, me jogou um olhar escrutinador e, por fim, estendeu a mão pra um cumprimento.

__ Oi, Filipe. Prazer te conhecer. Vai desculpando o mau jeito.

Eu meio que sorri, e fiz um aceno leve de cabeça. Ela devia me achar um idiota, pensei. E depois pensei no porquê de me preocupar com o que ela achava de mim. Mas me preocupei. E não quis parecer idiota. E falhei. O cumprimento não terminou, ela não soltou minha mão, por isso falhei.

__ Filipe, a gente pode deixar nossa reunião de trabalho prum outro dia? Hoje eu quero...
__ O quê?
__ Quero rodar. Vem, vamos rodar.

Descemos de mãos dadas pelas vielas do Centro. Ela ia num passo apressado e eu atrás tentando acompanhar mas sem parecer muito afoito. No passo apressado ela ia me narrando sua tragédia pessoal, de maneira não muito linear, e misturava o sorriso com lágrimas vez em quando. Daí ela parava, sem mais nem menos, se encostava no muro e fazia que não com a cabeça.

__ Posso te levar pra algum lugar?
__ Precisamos de mais bebida antes disso, Filipe. Não sei pra onde você quer me levar, mas sei que lá não tem bebida. E sem bebida não tem negócio hoje, Filipe.
__ Eu entendo. Mas tem algum lugar que você queira que eu te leve?
__ Tem, Filipe. Pior que tem.

Ela me arrastou até a Igreja Matriz. É.

__ Filipe, eu ia casar aqui mês que vem. Agora não vou mais. Ó, tem nem aliança mais no dedo, só a marquinha do sol. Era linda a minha aliança, Filipe. Agora tá empenhada.

Ela fez cara de surpresa, depois guardou um breve silêncio. De cabeça baixa, me perguntou se eu podia ajudá-la a contar pro padre que o casamento tinha sido cancelado.

__ Mas nesse estado? Você acha prudente? Afinal, é um padre, não sei se ele vai gostar de te ver assim.
__ Quem liga? Você liga? Eu não ligo pro que o padreco aí acha: eu fui largada. Se tô bebendo a culpa não é minha, se não tivesse sido largada tava linda em casa pensando nos docinhos da minha festa. Uma hora tava pensando nos docinhos e de repente virei um pudim de cana. E eu não ligo, Filipe. E você parece ser um cara muito bacana, então hoje, por mim, você também não vai ligar.
__ Mas ó, já é noite. Não acha melhor voltar aqui amanhã? Venho com você se você quiser, sem problema algum.
__ E você pretende passar a noite comigo pra vir aqui amanhã? Porque ó, hoje não durmo. Não tem como dormir, Filipe, ou tem? Como eu vou deitar a cabeça no travesseiro sem lembrar daquele desgraçado que me largou com o casamento todo pago? Porque, Filipe, eu não sei se eu te falei, mas tava tudo pago. Meu pai pagou tudo, coitado, até a lua-de-mel pra Fernando de Noronha ele pagou. Meu Deus do céu, Filipe, tenho nem como pagar pro meu pai essas coisas aí. Será que posso cobrar dele?
__ Escuta, vamos deixar a conversa com o padre pra amanhã. Deve ter outra coisa que você queira fazer agora.

Ela fez que sim com a cabeça e voltou a me arrastar pela cidade. Paramos em frente à loja de penhores. Claro. Estava fechada, mas ela não se deu por vencida. Bateu, bateu, bateu. O dono veio ter com ela meio indignado, mas ela chorou litros e ele enfim abriu a porta. Ela me pediu pra aguardar do lado de fora e entrou sozinha. Cinco minutos depois, veio ter comigo.

__ Você tem quinhentos reais aí? O infeliz empenhou minha aliança por essa mixaria. Não dá pra acreditar que eu ia casar com esse cara.
__ Tenho não.
__ Você pode ir no banco sacar?
__ Também não tenho no banco não.

Nem se tivesse, ela resmungou. Voltou pra loja e saiu um minutinho depois, brava, bem brava. O dono não quis devolver a aliança sem receber o valor do empenho. Não adiantou nem contar sua tragédia pessoal.

Seguimos andando pela cidade, parando ocasionalmente pra comprar bebida. Ela entornava vorazmente uma garrafa de pinga, da branca, a pior. Eu bebia uma cervejinha. Conversamos um pouco sobre ela, as coisas que ela fazia, as coisas que ela gostava, e a cada minuto eu gostava mais dela. E não conseguia vislumbrar um motivo sequer pra uma mulher como ela ser deixada. Tentei verbalizar isso, certamente a faria se sentir melhor, mas preferi não falar nada.

Já devia passar da meia-noite, já havíamos andado por horas. Paramos na praça, eu me sentei, ela ficou em pé, falando sozinha. Do nada a música começou a tocar. Era uma música antiga, me lembro de ouvir quando criança, meu pai escutava muito em vinil. Começou a tocar mas nem eu nem ela pudemos precisar de onde vinha: não havia uma luz acesa em nenhum prédio, nem carro passando, nada. E a música vinha alta e clara, tão perto da gente, e ao mesmo tempo de lugar nenhum. Ela parou, encantada. Sorriu, encantada. Eu olhei pra ela, encantado.

__ Parece que temos trilha sonora, Filipe.

Ela rodou, e rodou, e rodou. E aí parou e me encarou, as lágrimas escorrendo fartas. Eu a puxei pra perto e a beijei. Ela não resistiu. Nos beijamos longamente, e a música não terminava, e ela amoleceu no meu braço. Findo o beijo ela voltou a me olhar, e me puxava com o olhar pra ela. A música continuava, e eu a olhei por longos minutos, uma eternidade. Sorri. Ela sorriu também.

__ Me senti num filme, Filipe. Isso não é coisa que se faça.

 

2 comentários:

  1. Adorei o blog, muito lindo, amei tudo. Parabéns mesmo, vou sempre estar aqui (:

    ontendency.blogspot.com

    ResponderExcluir