Era
um moço bem moço. Trabalhava como mensageiro de uma empresa
terceirizada que prestava serviço pra várias repartições
públicas. Era sozinho – mas sozinho mesmo, de uma solidão de dar
dó. Não tinha família, amigos nem bichos de estimação. Era um
moço bem moço e bem só, que parecia carregar consigo uma gravidade
mais que pesada que o próprio peso. Era curvado, branco e frio.
Normalmente ele não falava com ninguém quando chegava, só
entregava o que tinha de entregar e partia. Mas aí ele começou a
mudar quando a outra mulher chegou.
A
outra mulher era a nova diretora da repartição. Ninguém gostava
muito dela, mas ela parecia gostar bastante de si mesma pra se
importar com isso. Era vaidosa, altiva e bastante egoísta. Mas o
moço bem moço que vinha deixar correspondência pra ela parecia ver
uma fada sempre que chegava. Parecia ser salvo sempre que a via. Eu
não entendia. Eu tentava trocar uma ou duas palavrinhas com ele mas
ele nunca olhava pra mim, então nunca podia ver meu sorriso – ele
tinha olhos só pra ela. Ele entrava, entregava a documentação
dela, parava ao meu lado pra tomar um copo d'água, ignorava meu
sorriso e ia embora, sempre olhando pra ela, e com uma fome que eu
nunca vi em olhar nenhum.
Com
o passar do tempo a gravidade dele foi se esvaindo, dando lugar a um
moço ainda mais moço. Jovial, sorridente, ereto e quente. Mas era
tudo só pra ela. Eu percebi isso quando ela tirou férias. Ele
voltou a ser o mensageiro macambúzio que as outras pessoas riam
quando ele saía da sala. O moço alegre voltou quando ela também
voltou, mas ela parecia não perceber. Ninguém ali parecia perceber,
além de mim. E um dia fui ter com ela, e perguntei se ela tinha
ideia do efeito que causava no rapaz. Ao que ela respondeu com uma
risada fria. Só isso, uma risada fria, e voltou ao que fazia, me
deixando ali feito boba.
Desde
então eu tentei de todas as formas atrair a atenção dele para o
fato de que ela não se importava, mas ele nunca me olhava. Até que
um dia eu o segui, consegui pegá-lo ainda na escada, e disse “sabe,
essa mulher por quem você é apaixonado, ela não liga”. Ele me
olhou sem me ver, disse que não sabia do que eu estava falando e
retomou a descida das escadas, sem olhar pra trás. Depois desse dia,
todas as vezes que eu tentava ter com ele eram fadadas ao fracasso.
Mas eu insisti. E da última vez que tentei, ele segurou com força
meu braço e disse que ela seria dele e eu não podia fazer nada pra
impedir, que ele já tinha percebido que eu o amava mas ele não me
amava e que devia deixá-lo em paz. Me assustei. E deixei pra lá.
Até
que chegou o final do ano. Faltavam algumas semanas pro réveillon
quando ele me procurou na repartição. Pediu desculpa pela forma que
havia me tratado e disse que eu ficaria feliz em saber que ele
passaria a virada de ano com ela. Nesse momento ela passou, ignorando
completamente qualquer ser ao redor, incluindo a mim e ao moço.
Olhei pra ele com curiosidade e interesse. “Como é possível que
ela passe a virada do ano com você se ela sequer considera sua
existência?”, perguntei. Ele riu e disse que já havia tomado
conta de tudo. Eu, que havia decidido desistir, apenas passei a ele
meu telefone e pedi que me ligasse caso algo desse errado, mas que eu
torcia pra que fosse uma noite ótima. Ele me abraçou e foi-se.
Fui
passar as festas no interior com minha família, mas não tirei o
moço da cabeça. Me arrependi de não ter pedido o celular dele pra
poder pelo menos sondar. E percebi que meu maior medo era, na
verdade, que eles realmente estivessem vivendo um affair, e ela por
ser daquele jeito não quisesse demonstrar pros funcionários. Porque
uma mulher como ela não se envolveria com um mensageiro – não
quando tem convites pra jantar com o chefe da repartição.
Na
festa de réveillon quase não me diverti, pensando no moço todo o
tempo. Até os imaginei, os dois de branco, com uma taça de
champagne, brindado àquele amor que nascia junto com o ano. Fiquei
num canto escondido e chorei a festa inteira. Quer dizer, eu entendia
o fascínio que ela exercia sobre ele, afinal ela era uma mulher,
linda, bem-sucedida, enquanto eu era só uma moça bem moça, que nem
ele, que passou a vida no canto, sem ser percebida.
Mas
meu celular tocou no momento da contagem regressiva. Havia uma
mensagem de um número desconhecido. Era ele. “Ela não pareceu
feliz em me ver na casa dela, mesmo com a ceia pronta, as velas
acesas e um bom champagne. Então tive de convencê-la a ficar”. Um
frio percorreu minha espinha. Não sabia o que ele queria dizer com
isso, então liguei. Mas a ligação não completou. Tentei de novo,
falhou de novo. Enquanto discava os números pela terceira vez,
tremendo, chegou uma foto. Ela estava amordaçada, amarrada à
cadeira, com os olhos inchados de apanhar e o nariz sangrando. Ele
estava ao lado dela. Feliz. Ele estava feliz.
Me
desesperei. Liguei de novo, a ligação completou mas ele não
atendeu. Mandei uma mensagem pedindo que ele a libertasse, passei meu
endereço caso ele quisesse ter um lugar pra pensar antes de decidir
que decisão tomar, mas que ele precisava sair da casa dela
imediatamente. Ele respondeu que estava com a mulher que amava no
exato lugar em que devia estar. Então eu entendi o processo dele.
Pedi o endereço pra fazer uma visita de cortesia, como amiga, pra
celebrar o amor dos dois. Ele me passou. Peguei o carro. Mais de uma
hora de viagem, mas algum dano maior podia ser evitado.
Durante
a viagem me perguntei o porquê de estar agindo dessa forma,
dirigindo na madrugada pra socorrer alguém assim. É certo que eu
gostava desse moço, mas não era certo o que ele estava fazendo, e
tampouco era certo eu tentar ajudá-lo. Eu podia simplesmente ter
avisado à polícia e ver o que acontecia. Mas percebi que, na
verdade, estava feliz por esse romance ser apenas um delírio dele.
Por ele ser louco de achar que uma mulher ficaria com ele. Ainda que
isso significasse cárcere privado e agressão, eu estava feliz por
saber que ele uma hora ia perceber isso e ia sofrer. E eu estaria lá
por ele.
Quando
cheguei não acreditei no que via. A mesa posta, as velas acesas, as
bebidas. Tudo tão cuidadosamente preparado por ele. Ela continuava
amarrada à cadeira, desacordada, sangrando. Ele cantarolava de algum
outro cômodo. Percorri a casa e fui encontrá-lo na cozinha. Ele
pareceu extremamente incomodado em me ver. Expliquei que tinha ido
até lá porque a festa que eu estava já tinha acabado e eu queria
me divertir. Ele não acreditou, mas não disse mais nada. Me levou
pela mão até a sala de jantar. No chão, perto da cadeira onde a
mulher estava sentada, vi um martelo de moer carne ao lado de um
celular destruído. “O namorado dela não parava de ligar”, ele
explicou. “Mas nós tivemos uma conversinha sobre isso, né, meu
amor?”, ele perguntou a ela, que havia acordado. Ela me olhou com
completo horror no olhos, começou a se debater tentando sair da
cadeira. Eu pedi a ele pra tirar a mordaça dela. Ele disse que não
podia, ela ia voltar a gritar, eu pedi por favor, fiz ela prometer
que não gritaria, ela indicou com a cabeça que não o faria, ele
tirou o pano. Ela, obviamente, gritou. Ele ficou desesperado, pediu a
ela que pelo amor de deus parasse, que os vizinhos iam aparecer e iam
estragar a noite deles, que ele tinha planejado tudo, que era pra ser
tudo perfeito. Ela continuou gritando. Peguei o martelo e bati na
cabeça dela com toda a força que pude acumular. Ele me olhou
aterrorizado. Veio pra cima de mim, e percebi que ele nem era tão
moço assim. Dei com o martelo na cabeça dele também. Uma, duas,
cinco vezes. O sangue dele cobriu meus braços, meu rosto. Limpei com
a toalha alvíssima da mesa. Apaguei as velas. Peguei uma coxa
particularmente gorda do peru e saí pela porta dos fundos. Um
vizinho olhava pela cerca. Desejei a ele um feliz ano-novo e ganhei a
rua. Ainda havia fogos, a noite estava bonita, então parei pra
olhar. Ouvi as sirenes ao longe, misturadas ao barulho dos fogos de
artifício. Parecia música.
Parecia
música.